3.9.13

Dez Mil e Um Aromas



A capacidade humana de perceber e interpretar odores, o mais apurado dos sentidos, é considerada até certo ponto enigmática. O cheiro das flores, do bolo que está no forno, do plástico novo, do fumo e mesmo o cheiro de alimentos estragados e de dejectos são logo detectados pelos sensores olfactivos, mesmo que a fonte do cheiro não tenha sido observada com os olhos.
As impressões resultantes dos aromas produzem bem-estar ou desconforto, agrado ou desagrado. A memória também é activada pelo olfacto, trazendo à mente imagens e factos do passado, estabelecendo correlação com experiências positivas e negativas.
A reacção do organismo humano aos aromas está associada às emoções, e estas são moduladas pelos níveis de hormonas circulantes. A detecção de certo aroma pelo córtex cerebral é responsável por alterações bioquímicas no organismo. Essas alterações são observadas através de mudanças nos níveis das hormonas responsáveis pelo controlo das funções orgânicas. Assim, os aromas podem ter impacto sobre o sono, o stresse, o desejo sexual, o apetite, o bem-estar, etc.. É por esse motivo que o estudo dos compostos aromáticos, bem como dos reflexos que estes provocam no corpo humano, tem despertado grande interesse.
Foi feito um grande avanço nesta área pelos pesquisadores norte-americanos Richard Axel e Linda Buck, que trabalham na tentativa de desvendar os mistérios do sentido do olfacto. Esses pesquisadores descobriram a existência de cerca de mil genes que actuam como receptores olfactivos, capazes de reconhecer e memorizar as aproximadamente dez mil substâncias dotadas de odor. O trabalho pioneiro feito por Axel e Buck na descoberta dos receptores olfactivos e da organização do sistema olfactivo recebeu, em 2004, o prémio Nobel da Medicina e Fisiologia.

Sentindo o cheiro
Tratando-se especificamente de alimentos, o cheiro é de extrema importância, situando-se entre a visão do produto e o sabor do mesmo. Depois de ver o alimento, o aroma complementa e pode ser determinante na escolha do que será consumido. Adicionalmente, o cheiro ajuda a evitar o consumo de alimentos deteriorados, embora nem sempre alimentos potencialmente aptos para causar intoxicações apresentem aroma alterado.
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A percepção do aroma em humanos acontece através da mucosa nasal. Nela se encontram 20 milhões de células receptoras sensoriais, cada uma contendo seis pêlos sensoriais capazes de perceber o aroma, descodificá-lo e encaminhá-lo ao cérebro. O olfacto do cão é estruturado por mais de 100 milhões de células sensoriais, cada qual com no mínimo 100 pêlos sensoriais. Assim, comparativamente, o olfacto humano parece ser menos sensível do que o de outras espécies de mamíferos.
Na cavidade nasal, situada entre a boca e a caixa craniana, encontram-se os órgãos do sentido do olfacto, revestidos por uma camada interna que segrega muco. O ar que penetra na cavidade nasal é purificado, humedecido e aquecido. A parte sensorial está situada no lado superior das fossas nasais, local conhecido como mucosa olfactiva ou amarela, uma vez que a parte inferior apresenta um revestimento vermelho devido à enorme quantidade de vasos sanguíneos que irrigam a área.
Na mucosa vermelha é produzido o muco que mantém a região nasal húmida. A intensidade do muco produzido é regulada pela dilatação dos vasos que irrigam a região. Quanto maior a dilatação dos capilares, mais muco será produzido, podendo até obstruir a cavidade, como acontece quando o indivíduo está constipado. As células olfactivas são neurónios autênticos, com receptores próprios que conduzem o estímulo ao Sistema Nervoso Central (SNC). Tal transmissão de estímulo só é possível pelo facto dos seis pêlos sensoriais das células olfactivas estarem mergulhados na camada de muco que reveste a cavidade nasal.
aromas
As moléculas aromáticas contidas no ar inspirado entram nas fossas nasais e dissolvem-se no muco, atingindo os pêlos sensoriais das células, para depois se ligarem aos receptores do epitélio olfactivo. Quando isso acontece, dá-se início a uma sequência de reacções químicas que originam impulsos nervosos que são conduzidos do centro das células olfactivas e deste ao SNC. Assim, os impulsos nervosos recebidos pelas terminações nervosas sensoriais nasais, seguem até ao centro olfactivo cerebral, situado nas áreas laterais do córtex, local onde os impulsos serão descodificados, e os odores reconhecidos.
Esse complexo processo de recepção, transmissão e identificação do aroma é extremamente sensível, sendo estimulado mesmo quando poucas moléculas voláteis estão presentes no ar. A sensação do aroma terá intensidade proporcional ao número de receptores que foram estimulados, o que por sua vez está relacionado com a concentração da substância volátil no ar inspirado.
Acredita-se ainda que a mucosa amarela possua alguns tipos básicos de células olfactivas, cada uma com receptores aptos para detectar certos tipos de odores. Os milhares de diferentes tipos de cheiros que conseguimos distinguir resultariam da integração de impulsos gerados por, no máximo, uns cinquenta estímulos básicos.

O cheiro dos alimentos
O olfacto tem um papel importante na distinção dos alimentos; enquanto mastigamos, sentimos simultaneamente o gosto e o cheiro dos alimentos. Flavour é a terminologia americana para designar a associação entre o sabor e o aroma dos alimentos, uma vez que tais sensações estão intimamente relacionadas. Todavia, o olfacto apresenta vantagem em relação ao paladar, uma vez que não requer contacto directo com o objecto percebido para que o estímulo seja produzido. Assim, o olfacto apresenta maior segurança e menor exposição a estímulos que poderiam ser lesivos ao organismo.
Por outro lado, o olfacto apresenta similaridade com a visão, por ter grande capacidade adaptativa: havendo exposição a um aroma forte, a sensação olfactiva pode ser igualmente forte. Todavia, a sensação do aroma será minimizada após cerca de 60 segundos. Mas há também divergência entre a visão e o olfacto. Enquanto a visão é capaz de notar um grande número de cores simultaneamente, o sistema olfactivo percebe a sensação de um único odor de cada vez.
A questão é que um odor detectado pode ser o resultado da combinação de vários compostos aromáticos. Assim sendo, a identificação do aroma do alimento é decorrente da percepção simultânea do conjunto dos seus compostos voláteis. No quadro, podem ser observadas as quantidades de compostos voláteis de certos produtos.
missing image fileA maioria dos componentes dos aromas é a mistura de compostos químicos como hidrocarbonetos, álcoois, aldeídos, ésteres, cetonas e compostos contendo enxofre. Com base na mistura dessas substâncias químicas, podem ser criados em laboratório os aromas artificiais usados em alimentos industrializados e também em outras áreas de interesse, como cosméticos.
Na análise dos compostos voláteis, a busca de substâncias características de determinado alimento é sempre de grande valor, tanto para servir de subsídio para a confirmação e garantia do produto, como para separar ou mesmo sintetizar posteriormente aromas artificiais.
Nem sempre o composto encontrado em maior concentração numa dada amostra de alimento é isoladamente determinante do seu aroma. A apresentação de um aroma isolado quimicamente ao olfacto humano não resulta em resposta satisfatória sobre a origem (alimento) deste. Assim, é a combinação de alguns compostos aromáticos que garante o cheiro específico que o alimento apresenta. O aroma pode fornecer uma verdadeira “impressão digital” do alimento. Dessa forma, os aromas artificiais são produzidos após separação e apresentação em conjunto ao olfacto humano, de forma a simular a presença de determinado produto.

Óleos essenciais são aromas
sabores
As misturas de compostos voláteis formam o óleo essencial de uma determinada variedade de planta. Durante o processamento e armazenagem dos alimentos, estes óleos essenciais são perdidos, por serem voláteis. Consequentemente, o alimento terá um menor aroma durante o seu envelhecimento.
Além dos óleos essenciais naturais dos alimentos, o aroma também pode ser formado durante a elaboração culinária. Nessa categoria encontramos uma série de produtos que exalam aromas específicos durante a preparação: doces, chá, café, cacau, amendoim, alho, brócolos, couve-flor e repolho, entre outros. O aroma dos condimentos, como orégãos e manjericão, são provenientes dos óleos essenciais contidos nas suas respectivas plantas. No quadro da pág. 8, pode ser visualizada a quantidade de óleo aromático contido em diferentes espécies de condimentos.
O uso de temperatura baixa pode minimizar a perda de compostos voláteis aromáticos dos alimentos. Um exemplo prático e útil está em armazenar a cebola no frigorífico para, dessa forma, reduzir a quantidade de compostos voláteis que irão desprender-se do vegetal durante o corte. O resfriamento reduz o famoso “choro” de quem pica a hortaliça.
No caso da indústria de alimentos, além da temperatura baixa, pode ser usada uma embalagem impermeável aos compostos voláteis, impedindo que estes extravasem do alimento antes de ele ser consumido.

Kesia Diego QuintaesDoutorada em Alimentos e Nutrição

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