11.7.14

QUANDO DORMIR BEM É MUITO MAIS


Introdução

Na edição anterior da S&L, foi abordada a problemática do consumo de substâncias – as anfetaminas e metanfetaminas – que originalmente foram elaboradas na perspectiva de tratamento de certas doenças. No entanto, perante os efeitos que a sua utilização abusiva provocava, vieram a revelar-se muito prejudiciais para os seres humanos, tendo sido desenvolvidos esforços (por exemplo, no campo da legislação) para conter as consequências nefastas do seu abuso.
No entanto, estas não são as únicas que, no grupo dos medicamentos, passaram a ser utilizadas de modo incorrecto. Para diminuir o impacto de alguns problemas que afectam um número crescente de pessoas, tem-se assistido à vulgarização do consumo de medicamentos em cada um dos seguintes grupos: soníferos ou hipnóticos, tranquilizantes ou ansiolíticos, neurolépticos ou antipsicóticos e anti-depressivos.

missing image filePode falar-se de uma nova epidemia. Aquilo que está a acontecer no âmbito destas quatro categorias de medicamentos, designados genericamente por medicamentos psicoactivos, é hoje uma preocupação em saúde pública.

O conceito de medicamento psicoactivo

Um medicamento psicoactivo não se distingue, na sua essência, 
aquilo que temos definido por “droga”: uma droga é uma substância que, ao ser consumida, produz um efeito psicoactivo. Um efeito psicoactivo caracteriza-se por uma alteração do nosso estado mental provocada pelo produto consumido.
Assim, um medicamento psicoactivo prescrito e usado correctamente, pode atenuar ou fazer desaparecer um estado de sofrimento psíquico, como seja ansiedade, depressão, uma doença maníaco-depressiva, perturbações delirantes, insónia, angústia (a identificação dos sintomas que este tipo de medicamentos pode influenciar poderia prosseguir).
missing image filePrescrito por um médico, após um exame que determina o tratamento que é mais adaptado ao estado do doente, um medicamento psicoactivo é a linha de recurso em alguns casos. O problema emerge quando um crescente número de pessoas passa a usar, com ou sem prescrição médica, doses não recomendadas para fazer face às suas perturbações rotineiras e diárias. Assim, podemos encontrar situações em pessoas de maior idade, confrontadas com a solidão, ou adultos em sobrecarga de responsabilidades, expostos ao stresse, a acontecimentos desgastantes, ou acontecimentos repentinos, não esperados na sua história de vida.
As perturbações do sono são um motivo recorrente que levam as pessoas frequentemente a recorrer ao
médico. Podem ser transitórias ou ocasionais, mas correm o risco também de se tornarem em condições crónicas. As causas podem ser somáticas (provenientes de causas físicas), psíquicas, psiquiátricas, ou então originadas e m condições que não proporcionam ou facilitam a conciliação do sono.

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Soníferos ou hipnóticos (o caso das benzodiazepinas)

Este quadro de perturbação do sono, descrito anteriormente, está na base do uso de soníferos ou hipnóticos, tais como as benzodiazepinas, com efeitos depressores. A actuação das benzodiazepinas incide sobre o sistema nervoso central, e são actualmente o grupo de fármacos mais receitados em todo o mundo.
Foram sintetizadas em laboratório em 1955 por Sternbach, mas o efeito tranquilizante do oxidoclorodiazepam, só em 1957 é que foi identificado por Kendall. Rapidamente, a variabilidade da síntese deu origem a mais de 2000 compostos, havendo muitas substâncias semelhantes, tais como o flunitrazepam (Rophynol) ou o diazepam (Valium).
O efeito básico das benzodiazepinas consiste em “travar” as mensagens de e para o cérebro, isto é, abrandam as respostas físicas, emocionais e mentais do cérebro. Quando este é sujeito ao efeito que elas produzem, ao facilitarem a acção do ácido GABA (gamma-aminobutírico) sobre os seus receptores, os resultados são vários: desde o relaxamento a nível ansiolítico, passando por hipnótico ou anti-convulsivo. O GABA é um neurotransmissor que inibe núcleos do sistema nervoso central. 
Importa recordar que, quando se administra um medicamento, ele pode circular no organismo basicamente através de três meios: através do sistema circulatório (vascular), através do sistema nervoso (psicoelementos) e através do trato gastrointestinal (em que o papel do fígado é relevante). Assim, por exemplo, se a administração se fizer através de uma seringa, o produto pode entrar subcutaneamente (S.C), intramuscularmente (I.M) ou intravenosamente (I.V.). 
No caso das benzodiazepinas (que podem ser introduzidas no organismo, por exemplo, através de comprimidos ou cápsulas), também pode ser feito recurso a ampolas ou supositórios, para a sua introdução no organismo, mas esta forma é menos comum. Embora esta seja a via mais usual (por via oral), também pode ser usada a administração intravenosa. Alguns dos nomes mais conhecidos são, por exemplo, valium, rohypnol, xanax, etc..

Efeitos das benzodiazepinas

Os seus efeitos manifestam-se sobre a ansiedade simples ou secundária, a insónia, convulsões, indução da hipnose, delirium tremens, adjuvante na anestesia geral, quando há procedimentos invasivos em que é preciso acalmar o paciente (por exemplo uma endoscopia) e relaxante muscular. 
missing image fileOs efeitos fazem-se sentir, por exemplo, na percepção da dor e do perigo, em que deixam de incomodar a sensação, embora se continue a sentir a dor. No entanto, o uso deste tipo de medicamentos – que irá justificar em algumas pessoas o seu abuso, em lugar de uma correcta e controlada utilização – leva a resultados negativos. Provoca alguma euforia, mas induz à indiferença e má avaliação do perigo. Sob o seu efeito, as pessoas tendem a responder menos a agressões oriundas de outros indivíduos, criando uma sensação errada de bem-estar social. Mas, simultaneamente (e contraditoriamente), há um aumento da hostilidade, alucinações, confusão, hipotermia. A ataxia e a anemia hemolítica são outros efeitos adversos, bem como depressão respiratória e amnésia. Estas condições podem ser substancialmente agravadas no caso de haver concomitância de toma de outras drogas ou álcool (que é recorrente acontecer).
Assim, embora podendo induzir o relaxamento muscular e, com as suas capacidades sedativas, auxiliar a suportar um estado menos favorável, a toma de benzodiazepinas provoca ainda a perda de memória dos factos recentes, diminuição da vigilância, sonolência (e por isso ser prescrita para pessoas sofrendo de insónia). Há, consequentemente, uma diminuição dos reflexos, maior lentidão a responder e, por isso, as consequências podem tornar-se muito gravosas no caso de quem estiver sob o seu efeito pegar num carro para conduzir, ou numa máquina para trabalhar.

A dependência das benzodiazepinas

Embora seja desconhecido pela maior parte das pessoas que estão a tomar benzodiazepinas – por exemplo, nos medicamentos para dormir – a verdade é que, ao fim de 6 semanas, corre-se o risco de se ficar dependente fisicamente deste tipo de medicamentos (mesmo quando o uso é moderado). Para além da dependência física, pode instalar-se ainda a dependência psicológica e, progressivamente, a pessoa passa a revelar sintomas semelhantes aos que são causados pelo consumo de outras substâncias (por exemplo, a cocaína ou a nicotina). 
Instala-se também no organismo do consumidor a tolerância à benzodiazepina. Isto é, para poder obter efeitos semelhantes, é necessário aumentar a quantidade de substância consumida. O que é grave neste processo, é que a pessoa que se tornou dependente da substância (por exemplo para dormir) imperceptível e inconscientemente aumenta as quantidades da toma, iniciando-se um ciclo caracterizado pelo síndrome de privação. No caso de tomar consciência dos perigos para a sua saúde e decidir parar com a substância, pode levar até 3 anos o tempo necessário para o organismo completar o desmame.
O problema é que os efeitos que se fazem sentir, tais como insónias prolongadas, perda do apetite, suores nocturnos, convulsões, psicoses, delirium tremens, tonturas, ansiedade, são manifestações de uma situação em tudo semelhante ao desmame de outras drogas consideradas socialmente “mais graves”.
É por esta razão que se tornou hoje um problema de saúde pública a problemática do consumo de benzodiazepinas. Os alertas estão por todo o lado, campanhas são lançadas, enquanto não pára de aumentar o número da população consumidora.

missing image fileO uso de benzodiazepinas em Portugal
No relat ório do International Narcotic Board, Portugal é identificado como tendo um dos mais altos níveis de utilização de benzodiazepinas, a nível europeu. Assim, a prescrição e utilização de benzodiazepinas no país reveste-se, até, de preocupação internacional. Por exemplo, enquanto que em Espanha (para os últimos dados disponíveis), em 2002, foram utilizadas 62 DHD de ansiolíticos e hipnóticos, em Portugal foram utilizadas 90,33 DHD (DHD: Dose por 1000 habitantes/dia). 
Os dados referentes ao ano de 2003 permitem constatar que existem diferen ças significativas entre as diferentes regiões do país no que diz respeito à prescrição de benzodiazepinas. Por exemplo, a região de Portalegre aparece com quase o dobro de consumos do que a região de Faro, com 115,35 DHD e 60,42 DHD, respectivamente (ver figura). Fonte: Cláudia Furtado, Inês Teixeira, Evolução da Utilização das Benzodiazepinas em Portugal Continental entre 1999 e 2003. Observatório do Medicamento e Produtos de Saúde, Direcção de Economia do Medicamento e Produtos de Saúde, Infarmed 2005

Outro dado relevante é que, no nosso País, a despesa nacional com benzodiazepinas não pára de aumentar ano após ano. Este dado releva a inconfundível tendência para o agravamento da situação, sendo pertinente indagarmo-nos sobre os modelos de prescrição, bem como o modo de encarar situações que parecem obrigar ao seu consumo (como é, por exemplo, a conciliação do sono).
Entre 1995 e 2001, constatou-se um aumento de 26% no consumo de benzodiazepinas em Portugal. No fim desse período, o Observatório do Medicamento e dos Produtos de Saúde (do Infarmed), indicava que 10% da população portuguesa estava a viver sob o efeito deste tipo de fármacos. Seguiram-se alguns anos de alguma estabilização, para novamente, em 2004, se constatar um novo aumento significativo das mesmas. Por razões práticas não é possível acompanhar mais recentemente esta evolução (por exemplo, abrangendo os anos desta crise mundial iniciada em 2008, com o aumento da precariedade das condições de vida para muitas famílias). 
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Teremos de aguardar alguns anos mais para que seja feito o tratamento desta informação – normalmente pelo Infarmed. Mas, atendendo à tendência, pode-se esperar que a saúde dos portugueses se tenha agravado, fruto da degradação das condições de vida que pesa sobre muitos desde 2008. 
As benzodiazepinas são, assim, as drogas do momento para conciliar, em muitos portugueses, mecanismos para lidar com os acontecimentos da vida. No entanto, o seu uso excessivo (já constatado nas estatísticas oficiais e que justificou o alerta referido) está longe de reflectir o panorama real, na medida em que caminhos alternativos permitem a muitos escapar à contagem estatística (ou por auto-administração de medicamentos ou outro mecanismo, procura-se este tipo de substâncias sem acompanhamento médico).

Dormir bem sem medicamentos?
Plano alternativo ao consumo de benzodiazepinas!
De acordo com um estudo realizado pela mesma altura a que se referem os dados estatísticos apresentados anteriormente (2004), a Deco dava a conhecer que cerca de metade da população portuguesa (47%) dorme mal e recorre em excesso a medicamentos para dormir. Mais de metade dos portugueses têm sonolência no seu dia-a-dia (56%) e cerca de um quarto dos portugueses admitia poder adormecer ao volante (21%). A percentagem de pessoas que recorre a medicamentos para dormir (16%) revela que um em cada 10 portugueses toma este tipo de medicamentos por iniciativa própria.
Num estudo ainda desenvolvido sobre as urgências do hospital de S. José, em Lisboa, foi revelado que um quinto das vítimas de acidentes de viação que aí foram atendidas tinha concentrações de benzodiazepinas no sangue.
No topo da lista das razões que presidem a esta situação está o stresse e a ansiedade (ver gráfico) com 55% das pessoas a indicarem-no.
missing image fileFonte: DECO. Metade dos portugueses dormem mal. Deco, 2004
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A despeito das condições de vida, é possível desenvolver uma abordagem que favoreça a conciliação do sono. Eis algumas sugestões:

1. Mantenha regularidade no horário (mesmo ao fim-de-semana) para dormir e acordar! Recorde que “2 horas dormidas antes da meia noite, equivalem a 4 dormidas depois da meia-noite”. – Ellen G. White.

2. Cuidado com as sestas: depois do almoço não durma; dê antes um pequeno passeio em passo relaxante e descanse (até ao máximo de 30 minutos), mas sem dormir.
3. Não utilize café, chá ou outras bebidas estimulantes.
4. Não ingira bebidas alcoólicas. 
5. Não fume.
6. Faça a sua última refeição de forma a dar tempo para se deitar com a digestão feita.
7. Não tome medicamentos para dormir por iniciativa própria em qualquer circunstância.
8. Pratique actividade física, idealmente até 4 horas antes de se deitar.
9. Controle as condições para dormir: tenha a temperatura adequada, o quarto ventilado e as fontes sonoras e de luz controladas.
10. Na cama, durma ou tenha relações sexuais: não estude, trabalhe, nem transforme o seu quarto numa sala de espectáculos, prolongando o seu dia vendo TV ou um filme favorito, nesse grande sofá acolhedor a que chama “cama” – deixe isso para a sala! (Adaptado de 10 Commandments of Sleep Hygiene, http://worldsleepday.wasmonline.org).

Luís Nunes

Sociólogo da Medicina e da Saúde 
Mestre em Saúde Pública

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