12.11.13

Uma Sociedade em Crise Expõe o Fim de uma Civilização

UMA SOCIEDADE EM CRISE
Embora fosse há muito anunciada, levou pouco tempo até se espalhar, como uma praga, a falência da sociedade que caracteriza o modus vivendi das últimas duas gerações. As mudanças que se estão a produzir mudam definitivamente o que pensávamos estar garantido. Novas ameaças prefiguram uma profunda alteração na correlação de forças e equilíbrios. Fundamentalmente, ficou comprometida a segurança, como valor indiscutível (do emprego, da segurança social, do direito à saúde, etc.).
Podemos procurar muitas explicações para esta mega-falência, mas existe uma que é das mais consensuais e que ninguém verdadeiramente questiona: a especulação!
A especulação, sem uma base sólida e segura, é alterar o valor das coisas, criando o ambiente favorável para a sua hipervalorização artificial, alavancando assim, aquilo que era considerado como uma verdade sagrada deste modelo social: o crescimento!

A Especulação do Espírito
Podemos afirmar que a nossa civilização, que chega agora objectivamente à declaração da sua decadência, encontra na fenomenologia do espírito o seu centro nevrálgico, sobre o qual é necessário reflectir para nos podermos melhor preparar e capacitar para enfrentar o momento actual.
Não existem registos de outras civilizações no passado, recente ou distante, da utilização alargada de substâncias psicoactivas (drogas) por largos sectores das sociedades [veja por favor edição anterior da S&L para a definição de substâncias psicoactivas (drogas)]. Encontramos em muitas civilizações vestígios do seu uso; no entanto, isso é constantemente restrito a uma elite muito reduzida dessas sociedades. Por exemplo, no Egipto, o tabaco foi usado pelos sacerdotes em circunstâncias cultuais definidas, e não existe indício do seu uso na população. Podemos dar o exemplo do álcool no Novo Mundo, substância que marcou a decadência das tribos ameríndias, incapazes de um consumo autocontrolado. Ainda no caso do tabaco, só a partir do século XV começou a ser usado na Europa, mas exclusivamente pela nobreza e elite real, o que tornava isso um fenómeno raro de utilização.
Poderíamos citar igualmente sobre outras substâncias, como, por exemplo, o LSD: esta substância começou por ser exclusivamente um produto consumido pelas elites nos finais da década de 60 do século XX.
Devido a vários factores que se conjugaram pela primeira vez na História da humanidade, em menos de 40 anos, espalhou-se pelo planeta o metabuso de substâncias psicoactivas (e em policonsumos – consumos simultâneos de substâncias, tais como café e tabaco, ecstasy e álcool, antidepressivos e café, tabaco e estimulantes, etc.) de um modo inigualável com qualquer outro momento histórico.
São alguns desses factores: os transportes e a sua rapidez, a industrialização, o comércio liberalizado, a publicidade desenvolvida pelas multinacionais como as tabaqueiras, companhias de produção de café ou chá, viticulturas ou intermediários comerciais, a indústria farmacêutica. Esta conjugação de factores divulgou produtos usados numa região do globo e desconhecidos de todas as outras, tornando-se comodidades acessíveis e apetecíveis a todos. Com os estereótipos fabricados pelo marketing, os hábitos pelo seu consumo normalizaram-se, e em poucas décadas, como uma praga, a sociedade humana foi induzida à especulação do espírito.
Podemos dizer que, conscientemente, alguns, muito poucos, induziram sobre toda a humanidade uma degradação do seu estatuto para reduzir a sua autonomia, tornando-a dependente de alguma substância, afectando o mais básico: a protecção e o bem-estar do próprio homem. Perante uma estratégia universal de degradação humana e privação da sua liberdade, não mais de modo físico como na época esclavagista, agora de modo muito mais sofisticado, interferiu-se no mais profundo de cada ser humano: no seu espírito.
missing image fileImporta, por isso, aproveitar os momentos de lucidez que ainda conseguimos obter, e ir ao fundo da questão que está em causa ao falarmos da especulação do espírito. Com este processo de desconstrução, percebemos o outro lado da conspiração universal, podemos optar por assumir um controlo mais consciente da nossa vida, e lutando contra a corrente, reganhar dignidade.

Drogas, Actividade Cerebral e Especulação Espiritual
Na óptica da especulação do espírito, a humanidade foi induzida a manifestar “controlo” quando prestes a explodir.
Perante o desespero que se instalou, muitos viram-se para as drogas que já consumiam, ou passam agora a consumir, tais como o álcool, tabaco, café, ecstasy, heroína e cocaína para ajudar a esquecer, ajudar a aquecer, ajudar a não saber, enquanto se dá um ar de “controlo” perante a especulação do espírito e a falência do sistema.
Até onde pode caminhar um ser humano neste ciclo vicioso? É preferível viver a especulação do espírito para abafar e negar a realidade? Acreditamos que não, e pensamos que se existe maneira de superar esta crise que afecta quase todos, importa perceber bem como podem ser usados os recursos mentais e espirituais (entre outros) que possuímos como alavanca que nos propulsione novamente para o controlo da nossa vida. Chega de enganarmo-nos a nós e aos outros, com essa constante especulação sobre o que não temos ou possuímos, tentando mostrar “que valemos mais”! Só assim evitaremos a nossa própria falência. Ajustarmo-nos
então à realidade ajudar-nos-á a compreendê-la, o que por sua vez nos capacitará para enfrentar as dificuldades do dia-a-dia com realismo.

Hedonismo e Especulação do Espírito: Uma Não Vai Sem a Outra!
Mas afinal porque tomam drogas os seres humanos, tornando-os assim únicos no reino animal? A razão resume-se em duas palavras: especulação do espírito. Compreendê-la bem é compreender a maneira de nos podermos libertar delas.
O ser humano encontra hoje, na base da sua existência, uma mola que o faz mover, vestir-se, arranjar-se, alimentar-se, ver, viver: o prazer e o bem-estar. Correr atrás do prazer, procurar o bem-estar, tornou-se no supremo objectivo da sociedade actual. Ter prazer aqui e agora, implica muitas vezes a utilização de meios que excedem a capacidade de alguns (para não dizer da maior parte). Estabeleceram--se assim novas regras para apoiar toda uma cultura desenvolvida em torno do prazer imediato. Com o hedonismo, procura-se o prazer, agora!
Este imediatismo leva, por exemplo, a procurar o prazer de possuir habitação, sendo o estatuto de proprietário mais consentâneo com a vontade de se ter a vida que se deseja, sem ter de dar contas a um senhorio. Este prazer tem, no entanto, um peso elevado, que se espraia pela história desse indivíduo, que fica preso à sua dívida para o resto da vida.
missing image fileEsta busca incessante de prazer encontra em certos produtos um ciclo fechado de gratificação, de recompensa, quando nos tornamos prisioneiros do imediatismo. A utilização das drogas transforma a busca do prazer imediato numa sensação imediata. Esta facilidade que o nosso cérebro tem de ser sujeito à especulação, resume-se a um prazer bioquímico.

Olhando para dentro do cérebro
Todas estas sensações são tecidas no interior do nosso cérebro com o contributo de várias substâncias que o formam e lhe dão consistência. A dopamina (uma das substâncias que se encontram no nosso cérebro) é aquela que faz activar o conhecido ciclo da recompensa, que está na base do prazer que qualquer ser humano ressente. Beber água activa esse centro de recompensa. As relações sexuais igualmente. Substâncias como a cocaína, ecstasy, tabaco, álcool, heroína, medicamentos psicoactivos, têm todos em comum o facto de que eles aumentam a quantidade de dopamina disponível nesta zona do cérebro, activando o ciclo de recompensa. É por isto – e não muito mais! – que os seres humanos se drogam.

Especulando o Espírito e o “Engano do Faz de Conta”
Vejamos o que acontece normalmente no cérebro. Todos nós reagimos quando nos apercebemos que, em lugar de termos um produto real, temos uma contrafacção. Quantos relógios tentam imitar a precisão de um Patek Philippe, mas, para um bom conhecedor de relógios, uma imitação nunca cumprirá o papel de um verdadeiro exemplar. No entanto, no nosso organismo, por vezes, o “faz de conta” sobrepõe-se ao verdadeiro, banindo mesmo o verdadeiro da sua existência.
Uma substância psicoactiva apresenta uma estrutura molecular parecida com a substância produzida naturalmente pelo organismo. Deste modo, ela pode fixar-se no lugar desta última nos receptores específicos. É uma molécula contrafeita, que toma o lugar de uma natural, desencadeando sensações parecidas com aquelas que criaria a molécula natural.
O problema, no entanto – que tem aqui mesmo a sua génese, no uso e hiperabuso de substâncias psicoactivas – é que nem sempre nós produzimos as substâncias que activam o nosso ciclo da recompensa, provocando uma sensação de prazer. Não é possível vivermos sempre “em especulação” sensorial, esperando estar sempre “despertos”, “eufóricos”, bem “dispostos”.
A questão central é: porque é que não existem moléculas naturais a produzir esses efeitos de prazer, sendo necessário – para a pessoa consumidora de drogas – recorrer ao “faz de conta” para sentir o efeito do real?
Esta é a questão central da compreensão da vida humana, questão essa que, no modelo de sociedade de “sucesso” e imediatismo, prazer “aqui e agora”, todo “o prazer sem olhar a quem ou a quê”, se transformou progressivamente numa armadilha, que tem roubado ao ser humano moderno a verdadeira capacidade de usufruir da vida. O modelo social que mencionamos nega o lugar da tristeza, da dor, de que alguma coisa não está bem.
Se alguém estivesse com a sua mão em cima de uma placa de um fogão, e inadvertidamente ligar o interruptor, iria perceber que alguma coisa não está bem, pelo calor que progressivamente se transforma em dor, afectando o seu bem-estar. Num gesto impulsivo, essa dor levá-lo-ia a tirar a mão da fonte de calor, evitando assim maiores males.
Do mesmo modo, quando o nosso cérebro nos envia sinais de tristeza, de sofrimento moral causado por circunstâncias que nos envolvem, isso causa-nos sofrimento psíquico, que se pode manifestar por reacções como o balanceamento do humor, falta de motivação, frustração, depressão, irritabilidade, para só mencionar algumas. Todos esses estados de alma são naturais, e seria fundamental aprendermos a viver com eles, encontrando mecanismos para os superar naturalmente, no lugar de recorrermos a artifícios “faz de conta” para recuperar o ânimo, ou a especular sobre os nossos estados de espírito.
Tudo isto se passa a nível biológico, o que compreendemos até certo ponto, mas através de uma grande complexidade, onde estão envolvidas as emoções, as relações sociais, o auto-conceito e a auto-estima, e outras componentes do ambiente físico, químico, biológico dos seres humanos. No entanto, o conhecimento já conseguiu penetrar nesta complexidade e entender algumas das suas regras.

O Funcionamento do Cérebro
O cérebro é constituído por estruturas microscópicas, que são condutores energéticos. A estrutura mais simples que aqui nos interessa é a sinapse. Uma sinapse é o espaço que envolve dois neurónios que nunca se tocam. Assim, para a informação do fluxo nervoso passar de um neurónio para o outro, o fluxo nervoso transforma-se em mensagens químicas, que tomam a forma de uma substância segregada pelo neurónio, designada por neuromediador (essa substância pode ser, dependendo do tipo de sinapses, a dopamina, a serotonina, a acetilcolina, etc.). Cada um destes neuromediadores ligam-se a receptores específicos.
É sobre este espaço que actuam as substâncias psicoactivas, como o café, o tabaco, o álcool, a cocaína e tantas outras conhecidas de todos nós. A conexão entre dois neurónios acontece no interior do cérebro, permitindo às informações circularem sob a forma de actividade eléctrica, designada por fluxo nervoso. Elas caminham a partir das dendrites até ao corpo celular, onde são processadas, e depois do corpo celular ao axoma. Podem ser identificados três modos de acção sobre o neuromediador, de acordo com as substâncias que existem:
• algumas substâncias imitam os neuromediadores naturais e substituem-se a eles, mesmo nos receptores: a morfina (da papoila do oriente), por exemplo, instala-se nos receptores da endorfina, e a nicotina (da planta do tabaco) nos receptores da acetilcolina;
• outros aumentam a secreção de um neuromediador natural: a cocaína, por exemplo aumenta a presença de dopamina na sinapse, e o ecstasy a da serotonina e da dopamina;
missing image file• alguns bloqueiam um neuromediador natural: por exemplo o álcool bloqueia os receptores designados NMDA.

O Cérebro humano
Regiões cerebrais e circuitos neuronais (vias nervosas)
O sistema hedónico (ou sistema da recompensa) é o centro do prazer, onde se criam as sensações de bem-estar por força do funcionamento bioquímico natural.
O sistema hedónico faz também parte do sistema límbico; compreende a área tegmental ventral que contém os neurónios da dopamina e o núcleo accubens onde é feita a sua projecção.
O sistema límbico, ou o cérebro das emoções, é o lugar onde as nossas reacções mais básicas tem origem, bem como a maior parte dos desejos e necessidades vitais, como alimentar-se, reagir à agressão, reproduzir-se. Deste modo, existem no cérebro circuitos cujo papel é o de recompensar estas funções vitais, através de uma sensação agradável ou de prazer. Este sistema é composto por outros, do hipotálamo, do hipocampo e da amígdala.
O que importa, assim, compreender é que as substâncias psicoactivas, que correm o risco de criar dependência, agem sobre o circuito do cérebro cuja função é a de favorecer as funções vitais do sistema de recompensa.
Esta implicação na emergência do prazer cerebral manifesta-se em comportamentos como alimentar--se ou reproduzir-se. Este sistema participa na satisfação de viver. As substâncias psicoactivas solicitam anormalmente este circuito, obrigando a uma especulação artificial, excitando-o para além do seu funcionamento normal, o que pode provocar, a termo, a possibilidade do seu desequilíbrio permanente.
Associado a este aspecto está um outro: a toxicidade potencial das substâncias psicoactivas, que, como aquelas de qualquer medicamento, está ligada à quantidade consumida, e, esta toxicidade é variável de um produto para outro. Portanto, quanto mais se consome um produto em doses tóxicas, mais gravosas se tornam as consequências, e vice-versa.

Luís Nunes
Sociólogo da Medicina e da Saúde
Mestre em Saúde Pública

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