24.1.14

PARA UMA VIDA ABUNDANTE

... não é necessário comida abundante
INTRODUÇÃO
Parece um paradoxo, mas esta é a verdade crua dos números: morrem mais pessoas por excesso de comida do que por falta dela. Saber comer tornou-se não só numa questão de sobrevivência da espécie humana, como ainda numa problemática ética, com a qual se joga o respeito pela sustentabilidade ambiental e a biodiversidade.
Os padrões alimentares que são adoptados pelos povos, promovidos pela indústria da comunicação social, obrigam-nos a desenvolver uma atitude de alerta e crítica. 
Por outro lado, os modelos seguidos pela civilização actual relativamente aos processos de cura da doença e disfuncionalidade (tais como uma simples dor de cabeça) estão directamente relacionados,
na maior parte das vezes, com o tipo de alimentação seguida.
Estas são já razões suficientes para eleger a temática da alimentação no âmbito da promoção da saúde. 
Seria utópico desejar, neste artigo, cobrir todas as dimensões relacionadas com a alimentação. Não só não teríamos o espaço necessário para o fazer numa revista desta natureza, como ainda as várias questões que se levantam obrigar-nos-iam a uma discussão muito detalhada de aspectos que poderiam saturar o leitor.
Assim, optamos por nos centrarmos numa pergunta: Para viver abundantemente, como é que me devo alimentar? O desafio não é tarefa pequena: será possível encontrar em poucas páginas de texto uma orientação suficientemente segura que possa resistir “às modas” e salvaguardar o bem-estar?
O passado da nossa história foi marcado por lutas pela sobrevivência da espécie, numa engenhosa actividade para garantir a subsistência. Enquanto, em muitas partes do Planeta, a escassez marca a rotina da sobrevivência, no Ocidente, e em Portugal, abundam os alimentos.
No entanto, esta abundância não eliminou as preocupações em torno do que se come. Para muitos, comer de um modo saudável tornou-se num verdadeiro quebra--cabeças: são os morangos bem esticados e vermelhos, alimentados de modo pouco natural; são as alfaces regadas com ninguém sabe bem o quê; são os frangos que foram enfeitados com nitrofuranos. É a carne de vaca que pode enlouquecer os humanos; é a carne de porco que envenena o organismo; são os bivalves das lagoas e costas portuguesas que vegetam nas águas poluídas pelas descargas das pocilgas e esgotos não tratados – sem sabermos depois se o que estamos a comprar é produto congelado durante a época da proibição; é o peixe que nos carrega de metais pesados debaixo da sua aparente candura… E a lista poderia continuar ao infinito. (1)
A situação é de tal maneira grave que a Comissão Europeia introduz deste modo a problemática da segurança alimentar: “as crises alimentares da última década chamaram a atenção para a existência de riscos de contaminação a partir de determinados tipos de alimentos para animais, principalmente os utilizados nos sistemas de criação intensiva.” (2) 

Neste labirinto de armadilhas e perigos, existem duas atitudes:
– desistir de fazer escolhas saudáveis e, assim, quando acontecer, aconteceu (a doença);
– empreender uma estratégia promotora de vida abundante, quando estamos perante a escolha no campo alimentar.
Escolher é uma das mais preciosas características de qualquer ser humano. Ela assenta fundamentalmente no conhecimento que temos sobre os domínios nos quais podemos exercer essa capacidade.
A questão prende-se, assim, não com a discussão de viver para sempre, e outras utopias, mas de agarrar a vida que temos e vivê-la de maneira abundante. Quando se fala de proveito e se pode pensar em bom proveito, imediatamente muitos dirão que deixar de comer isto ou aquilo, é incompatível com esse tão procurado bom proveito, e por isso há que comer de tudo o que nos sabe bem.

A vida só é sustentável se abraçarmos uma nova visão do que ela representa, ao ser sustentada pelo contributo da Nutrição! Aceitar-se um novo conceito de alimentação é a possibilidade de usufruir de vida com bom proveito! Pode ser um pequeno passo que mudará o rumo não só da sua vida, mas o próprio futuro da humanidade. (3)
As Nações Unidas estimam que 130 milhões de europeus são afectados por episódios de doenças provocadas pela alimentação. A diarreia, uma causa de morte e atraso do crescimento das crianças, é um dos sintomas mais comuns das doenças causadas pela nutrição errada. Com os novos patogénicos, agentes transmissores de doença, como o agente da encefalite espongiforme bovina e a utilização de antibióticos nas rações de animais (que transferem ambio-resistência aos patogénicos humanos), estamos perante um problema fundamental de saúde pública.
Através da alimentação não racional, o organismo humano incapacita-se também para resistir à doença. Por isso, existem duas regras de ouro para vencer a luta contra a doença, que podem ser desencadeadas por uma nutrição incorrecta: 
• comer fundamentalmente o que for de primeira apanha,
• e promover a biodiversidade do planeta azul do sistema solar.

1ª Regra para uma alimentação de uma vida abundante: 
Comer o que for de primeira apanha!
Uma alimentação racional é uma das mais importantes mudanças a promover, se deseja viver abundantemente. Esta é uma expressão muito usada, e que merece ser aqui dissecada. A evidência científica apontaria para uma definição de alimentação saudável ou racional como aquela que é constituída pelos nutrientes provenientes dos produtos com o estatuto mais primário da cadeia alimentar. (4)
Um grão de milho que é comido por uma galinha, que depois é ingerida por uma criança, mas deixa os ossos para serem moídos e produzirem rações que vão alimentar uma vaca que, depois de morta, será consumida em bifes e costeletas, representa um exemplo típico do que é a cadeia alimentar actual. 
Recordo-me de ouvir dizer que, no tempo dos meus avós, a fruta era para os porcos. Hoje, as campanhas alimentares provocaram uma mudança neste tipo de comportamento e as maçãs e as pêras, que eram deitadas aos suínos, são consumidas pelos humanos… infelizmente, juntamente com os mesmos porcos. Em vez de comermos uma cenoura que foi mastigada por um coelho, devemos, em vez do coelho, comer a cenoura. Em vez de comermos um bife de vaca que foi alimentado pelas rações compostas de favas e aveia, ossos de galinha misturadas com antibióticos e outros medicamentos, devemos comer as favas e a aveia. Em lugar de nos alimentarmos de peixe espada, que ninguém poderia supor encontrá-lo contaminado com chumbo, deveríamos reforçar a alimentação com produtos hortícolas.
Por outras palavras, quanto mais processado for um produto na cadeia alimentar, menos adequado será para o consumo humano. (5)
A melhor alimentação para o ser humano é aquela que foi processada o menos possível. Deste modo, ainda que ela contenha insecticidas e outros produtos que os agricultores se dispõem a colocar para chamar a atenção do cliente nas bancas do supermercado, o nosso organismo estará mais bem preparado para combater esses venenos. 
Se eles nos chegarem em primeira mão, em vez de já processados por outros organismos vivos, que os concentraram em altas quantidades nos seus tecidos, constituindo posteriormente a base da nossa alimentação, a nossa saúde será beneficiada.
Assim, uma alimentação própria para o consumo humano deveria ser construída no patamar mais básico da cadeia alimentar.

2ª Regra para uma alimentação de uma vida abundante:
Comer, mas sem destruir a vida e o planeta que nos acolhe nesta viagem pelo espaço! 
Esta questão é fundamental por uma outra ordem de razões. 
Estamos cansados de ouvir falar da sustentabilidade (ou ausência dela) da vida no planeta Terra. (6) Agora até se tornou moda de “bem parecer” com as campanhas mediáticas de pessoas famosas. Gostaríamos de ver renascer, como o sol numa manhã de Primavera, a justiça, a paz, o fim das tensões sociais. Empenhamo-nos em conferências internacionais para que se respeite a biodiversidade como condição sine qua non da sobrevivência da espécie, e não nos cansamos de apelar ao bom senso de políticos. 
Mas e nós, cidadãos, que papel temos a desempenhar nestas questões?
O respeito pela biodiversidade7 passa pelas nossas opções em termos nutricionais também. Importa, por isso, lançar um vasto movimento sócio-ecológico para garantir a sustentabilidade da vida humana neste canto do Universo. 
A destruição da floresta amazónica não é só consequência da exploração das madeiras, mas também da pressão do consumo de carne que a industrialização veio impor. (7)
Deste modo, são destruídos os habitats de espécies raras. Com as enormes quantidades de amoníaco (entre outros) produzidas pelas manadas de vacas a perder de vista, o subsolo é destruído e os afluentes dos rios são poluídos a uma velocidade desconhecida do passado da história humana, colocando-se em causa o equilíbrio desses ecossistemas. Por isso, se diminuísse a procura de hambúrgueres e pratos confeccionados à base de carne, a pressão sobre as florestas tropicais diminuiria drasticamente, vislumbrando-se um futuro diferente para a humanidade. 
Isto não é um discurso catastrofista: levará ainda alguns anos até que a catástrofe aconteça; mas ela acontecerá, se não mudarmos as nossas escolhas de hoje, que poderão hipotecar ou reforçar as condições para uma vida abundante no futuro. Assim, “comer o que bem me apetece” assume contornos de responsabilidade social e ecológica. (8,9)
Mas esta questão ecológica vai ainda um pouco mais além das florestas. Ela toca o sensível problema do sofrimento provocado nos animais destinados ao consumo humano. Há algum tempo vi um documentário onde era apresentada a necessária mutilação provocada aos pintos ao lhes ser cortado o bico com uma guilhotina, antes de serem colocados em pequenas gaiolas onde a luz artificial, conjugada com a luz natural, não davam descanso à produção em grande escala de frangos...
A consciência ecológica que dá os passos tímidos, um pouco por todo o lado, deveria estimular a nossa sensibilidade para reformular conceitos de vida e paladares. Por isso, a escolha de uma alimentação racional não é mais um assunto do foro individual, mas é uma responsabilidade social, que assume contornos sociais específicos, que implicam a sobrevivência da própria espécie, pois ela depende profundamente da biodiversidade que a envolve. 
Afinal, a alimentação pode contribuir para uma vida abundante. Para isso, a regra é simples: comer o que for de Primeira Apanha, comer mas SEM Destruir a Vida e o Planeta (PAsemDVP). Se nas escolhas que fizermos no dia-a-dia esta for a nossa procura, constataremos que naturalmente os padrões de procura alimentares se reformularão, a fome será eliminada, a saúde das populações melhorada, e, finalmente, cada um poderá viver mais abundantemente.

Bibliografia:
1. Update: multistate outbreak of Escherichia Coli O157:H7 infections from hamburgers—western United States. MMWR Morb Mortal Wkly Rep 1993 Apr 16;42(14):258-263). 
2. Do campo à mesa Uma alimentação segura para os consumidores europeus Série: A Europa em movimento Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, p. 6, 2005
3. Ornish, D., Brown, S.E., et al. 1990. Can Lifestyle Changes Reverse Coronary Heart Disease? The Lifestyle Heart Trial. Lancet Jul 21;336(8708) :129-133
4. Anderson J , Johnstone BM, Cook-Newell ME. Meta-analysis of the effects of soy protein intake on serum lipids. N Engl J Med 1995 Aug 3;333(5):276-282)..
5. WHO Commission On Health and Environment. Environmental Effects of Intensive Agricultural Production. In: Report of The Panel on Food and Agriculture. Geneva, Switzerland: World Health Organization, 1992 p. 48.; Pennington JA. Nutrient Content Chapters on “Meats”, “Poultry”, and “Milk, Yogurt, Milk Beverages, and Milk Beverage Mixes. In: Bowes and Church’s Food Values of Portions Commonly Used, 5ª Edição. Philadelphia, PA: J. B. Lippincott Co., 1989 p. 135-146, 150-155, 160-165
6. Agenda XXI, Conferência do Rio de Janeiro, 1992
7. Nadakavukaren, A. Introduction to Ecological Principles. In: Man and Environment, A Health Perspective - 3ª edição. Prospect Heights, IL: Waveland Press, 1990 p. 36
8. WHO Commission on Health and Environment. Environmental Effects of Intensive Agricultural Production. In: Report of The Panel on Food and Agriculture. Geneva, Switzerland: World Health Organization, 1992 p. 39
9. Isabel do Carmo, Saúde em Tempo de Risco, Relógio d’água, 1993, p.90

Luís Nunes
Sociólogo da Medicina e da Saúde Pública
Mestre em Saúde Pública

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